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Como alcançar uma cidade democrática?

Municípios brasileiros ainda precisam avançar muito no quesito transparência e incentivo à participação da população

Fonte: Projeto Colabora

Enfrentar a desigualdade social, assegurar a implementação da lei de acesso à informação à nivel municipal, fortalecer as instituições participativas de forma que elas resistam a tentativas autoritárias  e mobilizar meios tecnológicos para ampliar a participação popular  foram algumas das medidas destacadas no debate “Como alcançar uma cidade democrática?”, promovido pelo Instituto Cidades Sustentáveis (ICS) no domingo, 10, último dos três dias do I Forum de Desenvolvimento Sustentável das Cidades, realizado no Pavilhão da Bienal do Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Diretor da Transparência Internacional Brasil, Renato Morgado, um dos participantes da discussão, disse que há três grandes movimentos de impulsionamento de cidades democráticas. Um deles, são instituições participativas, criadas durante a redemocratização do Brasil.

“Com a volta da democracia, criamos instituições participativas e, hoje, o Brasil conta com conselhos de políticas públicas, audiências públicas, e instrumentos como o orçamento participativo, que nasceu na esfera local e foi exportado para vários países do mundo. Durante a democratização entendemos que para além da democracia representativa eram necessárias instituições de participação e o Brasil foi muito feliz porque criou um conjunto muito amplo de instituições participativas. É um patrimônio que precisamos aprofundar”, afirmou.

O segundo movimento citado por Morgado é o da transparência, princípio incluído na Constituição. “Entramos na era da transparência com marcos legais claros. Temos muito mais inofrmações do que há 10 anos, mas obviamente que temos ainda muitas lacunas de transparência, especialmente nas cidades”, explicou.

É fundamental o fortalecimento à nível local da lei de acesso à informação, que completou 10 anos em maio, ressaltou Morgado. “Ela traz uma série de elementos muito importantes. A transparência é a regra e o sigilo é a exceção. No âmbito das cidades, praticamente toda a informação não se enquadra naquilo que a lei coloca como possibilidade de sigilo. O sigilo é colocado, por exemplo, em situações de segurança pública, informações que podem colocar em risco a saúde da população. Por isso, em tese, as cidades têm que ser 100% transparentes”, explicou.

No entanto, é justamente nas cidades que essa legislação de acesso à informação é menos implementada. “As cidades não têm estrutura para colocar pessoal dedicado a produzir informações. Esse é um desafio que os municípios devem enfrentar. Porque sem trasparência a sociedade não consegue participar e cobrar dos governos a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis”, concluiu Renato Morgado.

O terceiro movimento, mais recente, é o uso de tecnologias e processamento de dados, ou seja, a utilização de aplicativos que fazem uma cidade se manter mais aberta para a sua população. “Esses três ciclos nos permitiram avançar, mas também não entregaram tudo para conquistarmos cidades democráticas. Precisamos aprofundar essas conquistas”, alertou.

O diretor da Transparência Internacional Brasil citou ainda um quarto fator importante, que é a promoção de cidades íntegras nas quais o interesse público se sobreponha a interesses privados: são cidades nas quais grupos de interesses não capturem as decisões públicas”. Para assegurar isso as cidades necessitam, segundo ele, de instrumentos como órgãos de controle autônomos. “Mas não podemos dissociar a transparência e a participação da cidade democrática de garantia de direitos”, acrescentou, citando a necessidade de assegurar a inclusão principalmente dos que estão fora dos processos decisórios.

Diretor do Instituto Cidades Sustentáveis (ICS), Jorge Abrahão perguntou aos debatedores o que fazer para assegurar os avanços institucionais já alcançados diante de ameaças de retrocessos democráticos. Morgado citou dois fatores fundamentais: criar instituições resistentes ao autoritarismo e fortalecer valores democráticos na sociedade.

“O que vivemos hoje não é só porque alguém ganhou a eleição. É porque parte da nossa sociedade aceita valores do autoritarismo, da desigualdade, do preconceito, do elitismo. Esses valores convivem entre nós e no momento em que existe a possibilidade de ganhar o poder político, vão ganhar”, respondeu o diretor da Transparência Internacional Brasil.

A importância do acesso à informação nas cidades foi destacada também por Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis e representante do Grupo de Trabalho Democracia Participativa da Rede Nossa São Paulo. Mas ele ressaltou que acesso à informação não significa acesso a avalanches de informações incessantes e não conectadas disponíveis todo tempo na internet, desde guerras distantes até tragédias provocadas pelo incentivo de uso de armas nos EUA ou no Brasil.

“A sociedade precisa de informação com alguma inteligibilidade e aí é que entra uma leitura de que o direito à informação é um dos direitos fundamentais que complementam os direitos à cidadania e o direito à cidade”, opinou.

Kayano destacou também a urgência de realizar políticas públicas municipais para reduzir as desigualdades, a maior chaga do país e um dos fatores que contribuem para o aumento da violência nas cidades brasileiras. “Direitos sociais são interdependentes e indissociáveis. Cabe aos municipios desenvolver um conjunto de políticas públicas de inclusão voltadas para a redução de desigualdades para que esta redução da desigualdade tenha reflexo na redução do grau extremo de violência que vivemos hoje em todas as cidades grandes”, disse Kayano

Ele citou a importância do Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades-Brasil (IDSC-BR), lançado na sexta-feira, 8, por iniciativa do ICS. Esse índice, segundo ele, contribuirá para fazer com que a sociedade cobre mais dos governos ações públicas integradas.

Jorge Kayano, que atua na cidade de São Paulo, reclamou do que ele chamou de esvaziamento dos conselhos das subprefeituras por parte do poder municipal. “Nas 32 subprefeituras de São Paulo, 10 conselhos não estão funcionando porque não há interesse em fazê-los funcionar, não há interesse de promover o diálogo com a sociedade através dos conselheiros que são eleitos pela população. Isso é o que chamo de resistência passiva de governo à participação social. Ninguém diz que é contra, mas não querem que eles funcionem, daí a tentativa de manipulá-los e controlá-los”, protestou.

Para ele, é vital a participação da sociedade na cobrança da aplicação correta do orçamento. “O Orçamento da cidade é de R$ 84 bilhões, o que dá R$ 7 mil reais por habitante. Isso representa dois salários-mínimos para cada família de quatro pessoas. Dois salários-mínimos são mais do que 40% da população de São Paulo recebe como renda em média. Esses recursos são fundamentais para a redução das desigualdades e para o oferecimento de serviços favoráveis à cidadania e à sustentabilidade ambiental, social e territorial”, afirmou.

Coordenador do Grupo de Trabalho Democracia Participativa, Maurício Piragino mediou o debate que contou ainda com a presença de Marlene Ferreira, da Liga Solidária, organização que há quase 100 anos atua na cidade de São Paulo com programas de educação de qualidade, longevidade e cidadania. Ela também integra a Comissão Municipal de São Paulo para o cumprimento dos ODS da agenda 2030 da ONU (Organização das Nações Unidas).

Maurício Piragino destacou dois pontos fundamentais. O primeiro, segundo ele, é a necessidade de a sociedade “superar a ideia de que há um gestor que sabe tudo, que funciona como um rei”. É preciso incentivar a participação popular nas políticas públicas para se obter uma cidade democrática, de acordo com ele. O segundo ponto destacado por Piragino é a descontinuidade das políticas públicas. “Isso acontece muito em razão de que as políticas que temos serem de governo. São poucas as políticas de Estado, que são incentivadas pelas ODS”, acrescentou.

O principal desafio, de acordo com Maurício, é acabar com a desigualdade na sociedade brasileira. “Infelizmente hoje no Brasil temos mais da metade da população em situação de insegurança alimentar. Nas cidades há centenas de novos projetos imobiliários e cada vez mais pessoas morando nas ruas. Alguma coisa está muito doente na nossa sociedade. Enfrentar a desigualdade é fundamental para que a gente tenha uma cidade democrática”, opinou ele, ressaltando a necessidade de descentralizar o poder político dos municípios, com o fortalecimento dos conselhos das subprefeituras.

Marlene Ferreira lembrou que a pandemia deixou marcas profundas nas cidades e é justamente em âmbito local que será possível construir as soluções, segundo ela. A representante da Liga Solidária disse que é fundamentar engajar as pessoas para promover as políticas públicas para quem mais necessita, daí a importância de uma comunicação eficiente, acessível a todos, e das parcerias das organizações da sociedade civil com empresas e governos. “Para que as pessoas tenham acesso à informação é preciso ter muita divulgação. Parcerias são importantíssimas porque a gente não faz nada sozinho. Nas questões nas quais não temos experiência precisamos fazer parcerias”, disse.

Sobre o desafio de engajar as pessoas na agenda 2030, Marlene Ferreira lembrou que as metas são muitas e que organizações como a dela “fazem trabalho de formiguinha”. Segundo ela, apenas 1% da população brasileira sabe o que são os ODS. “Olha o tamanho do nosso trabalho. A gente precisa engajar as pessoas na agenda e por isso as parcerias são importantes”, acrescentou.

Ela elogiou o Índice de Desenvolvimento Sustentável das Cidades, lançado no primeiro dia do Fórum: “É uma ferramenta extremamente importante para influenciar as políticas públicas”. Ferreira também ressaltou a importância de uma atuação eficiente das subprefeituras. “Temos de levar educação ambiental para os territórios, por exemplo, e para isso precisamos cobrar das subprefeituras. Cada um tem que fazer a sua parte: os territórios, as organizações da sociedade, que fazem a ponte para isso acontecer, mas as subprefeituras também deveriam fazer o papel delas”, concluiu.

Florência Costa
Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro “Os indianos” (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).